O nascimento (histórico) da saúde na escola
Os avatares da política de atenção à saúde escolar remontam o final do século XVIII e o início do século XIX, quando o médico alemão Johann Peter Frank (1745-1821) elaborou o System einer Vollständigen Medicinischen Politizei que ficou conhecido posteriormente como Sistema Frank.
O Sistema Frank foi um guia publicado na Alemanha, a partir de 1779, em nove volumes (sendo os dois últimos póstumos). Na avaliação de Rosen1, "este trabalho hoje é considerado um marco no pensamento a respeito das relações sociais da saúde e da doença". O Sistema Frank contemplava não apenas a saúde escolar, mas, também, múltiplos aspectos da saúde pública e individual, tais como demografia, casamento, procriação, puerpério, saúde infantil, medicina militar, doenças infecto-contagiosas, vestuário, esgotos, suprimento de água e prevenção de acidentes2. Enfim, tal guia deveria mesmo ser abrangente, visto que foi escrito sob a inspiração do pensamento político e econômico vigente no final do século XVII e início da maior parte do século XVIII, na Alemanha, no qual, segundo Heckscher, citado por Rosen, foi "marcante a admiração pelas virtudes de uma população crescente e o intenso desejo de aumentar o número de habitantes de um país"1.
A referida obra - o Sistema Frank -, legou a Johan Peter Frank o reconhecimento como o pai da saúde escolar visto que, no tocante ao tema, [...] dispunha detalhadamente sobre o atendimento escolar e a supervisão das instituições educacionais particularizando desde a prevenção de acidentes até a higiene mental, desde a elaboração de programas de atletismo até a iluminação, aquecimento e ventilação das salas de aula"2.
O Sistema Frank resultou na proposição de um código elaborado por Franz Anton Mai. Rosen1 observa que "Mai estava totalmente familiarizado com o Medicinische Politizei de Frank, pelo qual tinha grande respeito, complementando-o graças ao seu esforço de encorajar a aplicação do conhecimento sócio-médico disponível em sua época". Tratava-se de um código de saúde de caráter abrangente e que dava grande ênfase à educação. De fato, [...] A primeira lei do código, tratando dos deveres de um oficial de saúde, propunha que este oficial agisse nos colégios, instruindo tanto as crianças quanto os professores a respeito da manutenção e promoção da saúde. Além disso, o oficial de saúde devia esclarecer o adolescente a respeito dos excessos sexuais1.
Há de se considerar que, na prática, o referido código proposto por Mai não chegou a vigorar plenamente em face de questões de ordem tanto econômica quanto política. Como já foi exposto, na Europa, o primeiro país a institucionalizar a polícia médica - que, dentre muitos campos de atuação, exerceu influência também sobre a saúde escolar -, foi a Alemanha. Mas as idéias do Sistema Frank logo se difundiram por todo o continente europeu e os Estados Unidos da América: [...] Em 1779, os volumes deste trabalho enciclopédico começaram a ser lançados, provocando, em muitas direções, um impacto evidente. Naturalmente, este efeito foi sentido com maior intensidade na área de língua germânica e em áreas, como a Itália, que estavam em contato estreito, tanto político quanto cultural, como os Estados alemães. Entretanto, não se pode negar a importância de Frank na difusão do termo e da idéia de "polícia médica" não somente na Alemanha, Áustria e Itália, mas também na França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Na verdade foi usado na Itália, até 18901.
No Brasil, pontua Moncorvo Filho3, os primeiros estudos sobre saúde escolar se deram a partir de 1850. Lima2 observa, no entanto, que embora um decreto do Barão do Lavradio, em 1889, tratasse de regulamentar a inspetoria das escolas públicas e privadas da Corte, de fato, a questão da higiene escolar somente ganhou impulso, no país, a partir do início do século XX. Naquele contexto histórico-social, marcado pela intensa imigração - essencial à expansão da cafeicultura -, o país vivenciava uma crítica situação de saúde pública. A varíola - uma doença atualmente erradicada em todo o mundo -, era um grande problema para a saúde pública e epidemias de cólera e peste bubônica comprometiam as atividades de comércio exterior do país. A isso se somava uma epidemia de febre amarela urbana e a alta incidência de doenças ainda hoje comuns à realidade brasileira, tais como malária, sífilis, tuberculose e hanseníase. Tal quadro nosológico tinha como tradução uma alta mortalidade da população em geral, obviamente agravada nas crianças, vitimizadas também pela desnutrição, por diarréias ou por doenças hoje imunopreveníveis, tais como sarampo, tétano, coqueluche e difteria.
Na avaliação de Lima2, a saúde escolar - ou higiene escolar -, como então usualmente era denominada, se deu na intercessão de três doutrinas: a da polícia médica, a do sanitarismo e a da puericultura. O termo "polícia médica" aqui utilizado tem a sua gênese no grego "politéia" e está relacionado a uma teoria prática e administrativa do estado absolutista alemão. Assim posto, Novaes4 avalia que a polícia médica foi o mecanismo através do qual o Estado assumiu a função de zelar pela saúde da população, cabendo aos médicos não somente a responsabilidade de tratar os doentes mas, também, controlar todos os aspectos da vida dos indivíduos.
Para Lima2, na saúde escolar, o exercício da polícia médica "se deu pela inspetoria das condições de saúde dos envolvidos com o ensino"; o sanitarismo, "pela prescrição a respeito da salubridade dos locais de ensino" e a puericultura, "pela difusão de regras de viver para professores e alunos...".
No transcorrer do século XX, a saúde escolar no Brasil experimenta avanços em sintonia com a evolução técnico-científica, deslocando o discurso tradicional - de lógica biomédica -, para a concepção da estratégia Iniciativa Regional Escolas Promotoras de Saúde (IREPS), um discurso de múltiplos olhares que surge no final da década de oitenta,"como parte das mudanças conceituais e metodológicas que incorporam o conceito de promoção de saúde na saúde pública, estendendo-o ao entorno escolar"5.
O conceito de promoção da saúde, no qual se baseia a IREPS, foi cunhado a partir da Carta de Ottawa como o processo destinado a capacitar os indivíduos para exercerem um maior controle sobre sua saúde e sobre os fatores que podem afetá-la, reduzindo os fatores que podem resultar em risco e favorecendo os que são protetores e saudáveis. Segundo tal concepção, [...] É essencial proporcionar meios para que, ao longo de sua vida, a população se prepare para as diferentes etapas da mesma e enfrente as enfermidades e lesões crônicas. Isto só será possível através das escolas, lares, lugares de trabalho e ambiente comunitário, no sentido de que exista uma participação ativa por parte das organizações profissionais, comerciais e beneficentes, orientada tanto ao exterior com ao interior das próprias instituições6.
Na opinião de Harada7, ao adotar a estratégia IREPS, "a saúde escolar passa, necessariamente, por uma revisão de seu conceito e de sua prática higienista e assistencialista" e, desta forma,"tem a possibilidade de avançar e ampliar a sua concepção e práticas com uma visão integral e interdisciplinar do ser humano, dentro de um contexto comunitário, ambiental e político mais amplo".
Iniciativa Regional Escolas Promotoras de Saúde (IREPS)
Desde 1995, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) tem estimulado a IREPS com o objetivo de fortalecer a capacidade dos países da América Latina e do Caribe na área de saúde escolar. A implantação de escolas promotoras de saúde implica um trabalho articulado entre a educação, a saúde e a sociedade e demanda a ação protagonista da comunidade educativa na identificação das necessidades e dos problemas de saúde e na definição de estratégias e linhas pertinentes para abordá-los e enfrentá-los. Trata-se de uma estratégia de promoção da saúde no espaço escolar com enfoque integral, tendo três componentes relacionados entre si, a saber:
1) Educação para a saúde com enfoque integral, incluindo o desenvolvimento de habilidades para a vida;
2) Criação e manutenção de ambientes físicos e psicossociais saudáveis e,
3) Oferta de serviços de saúde, alimentação saudável e vida ativa.
Na avaliação de Ippolito-Shepherd5 a escola promotora de saúde é a instituição educacional que:
Implementa políticas que:
- Apóiem a dignidade e o bem estar individual e coletivo;
- Ofereçam múltiplas oportunidades de crescimento e desenvolvimento para crianças e adolescentes.
Implementa estratégias que fomentam e apoiam aprendizagem e saúde:
- Permitindo a participação dos setores saúde e educação, da família e da comunidade;
- Oferecendo educação para saúde em forma integral e treinamento em habilidades para a vida;
- Reforçando os fatores de proteção e de diminuição de risco;
- Permitindo o acesso aos serviços de saúde, nutrição e atividade física.
Envolve todos os membros da escola e da comunidade:
- Na tomada de decisões
- Na execução das decisões.
Tem um plano de trabalho para:
- Melhorar o ambiente físico e psicossocial;
- Criar ambientes livres de fumo, drogas, abusos e qualquer forma de violência;
- Garantir o acesso a água limpa e instalações sanitárias;
- Possibilitar a escolha de alimentos saudáveis;
- Criar um ambiente escolar saudável;
- Promover atividades que se estendam para fora da escola.
Implementa ações que conduzam a melhorar a saúde de seus membros e trabalha com os lideres da comunidade para assegurar:
- Acesso à nutrição;
- Atividade física;
- Condições de higiene e limpeza;
- Serviços de saúde e respectivos serviços de referência.
Oferece treinamento efetivo a professores e educadores
Tem Comissão Local de Educação e Saúde:
- Associação de pais;
- Organizações não governamentais;
- Organizações comunitárias.
Segundo a avaliação de Silva et al.8, a Escola Promotora de Saúde se traduz como importante estratégia para uma cidade mais saudável, numa ótica de inclusão e participação. Assim posto, [...] como espaço de referência para a comunidade, representada por familiares, responsáveis, profissionais de educação e outros, a escola pode exercer um papel protagonista de práticas educativas na intercessão com outros equipamentos sociais, entre os quais se destacam, nessa iniciativa, os serviços de saúde e, particularmente, a pediatria8.
Os referidos autores ainda nos alertam que "as práticas educativas em saúde não se restringem ao profissional de saúde e aos serviços de saúde, mas devem ter neles o seu lócus"8. No entanto, os mesmos advertem que tais práticas devam ser construídas junto com os educadores e inseridas no projeto político pedagógico da escola.
O lugar da atenção à saúde na educação básica
Usualmente, os técnicos da área de saúde têm compreendido a educação em saúde na escola como intervenções pontuais, a respeito de conteúdos afeitos a questões nosológicas do momento. Técnicos de saúde falam, por exemplo, de dengue na escola para crianças e adolescentes porque uma epidemia de dengue assola a sociedade. Trata-se, a nosso ver, de uma intervenção, no mínimo, equivocada, visto que, conforme preconizam os parâmetros curriculares nacionais (PCN), os conteúdos de saúde devem comparecer no currículo da formação de crianças e adolescentes como uma abordagem transversal e interdisciplinar: tais conteúdos constituem objeto da atenção de todos os níveis e séries escolares, integrados a todas as disciplinas como um discurso cotidiano do processo ensino/aprendizagem9.
No entanto, a relação entre a Saúde e Educação, no que diz respeito à saúde escolar, nem sempre tem sido harmoniosa. Quando pensada numa perspectiva exclusivamente médica e focalizada no controle e prevenção de doenças, a educação em saúde tem sido pouco efetiva para provocar mudanças de atitudes que levem a opções mais saudáveis de vida. A este respeito, Cerqueira10 pontua que [...] a escola, na maioria dos casos tem sido lugar de aplicação de controle e prevenção de doenças, porque o setor saúde costuma ver a escola como um lugar onde os alunos seriam um grupo passivo para a realização de ações de saúde. Os professores frequentemente se queixam de que o setor saúde usa a escola e abusa do tempo disponível com ações isoladas que poderiam ser mais proveitosas, com um programa mais participativo e protagonista de atenção à saúde"10.
De acordo com os referidos PCN, através do trabalho rotineiramente realizado pelos professores e especialistas em educação do nosso país, os educandos - dentre muitas outras habilidades - deveriam ser capazes de situar-se no mundo como cidadãos conscientes de seus direitos e deveres políticos, civis e sociais, capazes de adotar no dia-a-dia atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças e que, especificamente em relação à saúde, estejam aptos a "conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva"9.
Assim posto, em vez de ações pontuais e isoladas, a melhor contribuição que a saúde poderia oferecer à educação reside na possibilidade de uma ação integrada e articulada, que de maneira crítica e reflexiva possa significar oportunidade de atualização dos educadores, capacitando-os para a tarefa de ministrar o discurso sobre orientação à saúde de forma transversal e interdisciplinar na escola. Outra relevante participação dos técnicos de saúde se justifica na dinâmica escolar do ensino básico, fomentando junto à associação de pais a criação de comissões locais de educação e saúde que dêem conta de interagir junto ao núcleo familiar e comunitário na criação de condições favoráveis da qualidade de vida da comunidade adscrita ao entorno escolar. Soma-se a isso, por fim, a atenção integral à saúde de cada um dos educandos.
Todas as ações anteriormente descritas passam a constituir, na atualidade, as diretrizes da nova política de atenção à saúde do escolar no Brasil. Nesse sentido, foi instituído em todo o território nacional o Decreto nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007, que cria o Programa Saúde na Escola (PSE), e dá outras providências11.
Trata-se de um programa cuja finalidade é "contribuir com a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica por meio de ações de prevenção, promoção e atenção à saúde"11 e que visa promover a saúde e a cultura da paz; articular as ações do Sistema Único de Saúde (SUS) às ações da educação básica pública; contribuir para a constituição de condições para a formação integral de educandos; contribuir para a construção de sistema de atenção social, com foco na promoção da cidadania e nos direitos humanos; fortalecer o enfrentamento das vulnerabilidades no campo da saúde e que comprometem o desenvolvimento escolar; promover a intercomunicação escola/saúde e fortalecer a participação comunitária nas políticas de educação básica e saúde11.
Em fina sintonia com o paradigma de saúde vigente, o PSE deverá ser implementado com a participação efetiva das equipes de Estratégia em Saúde da Família, respeitando-se todos os princípios do SUS. Dessa forma, as ações em saúde previstas no âmbito do PSE, a serem desenvolvidas em articulação com a Saúde e a Educação, deverão considerar a integralidade dos educandos, o que significa garantir a cada um deles o direito à avaliação clínica, oftalmológica, auditiva, psicossocial, saúde e higiene bucal, avaliação nutricional, promoção da alimentação saudável, bem como o acesso a ações educativas que lhes garantam educação permanente em saúde - aqui incluídas a atividade física e saúde -, através de uma cultura da prevenção no âmbito escolar. Dessa forma, a Saúde e a Educação Básica integradas deverão oferecer à criança e ao adolescente escolarizados uma tutoria de resiliência que lhes confira proteção contra a dependência química, o risco de câncer, acidentes e violência, doenças sexualmente transmissíveis/aids, gravidez e doenças crônicas11
Considerações finais
Entendida, de início, como uma prática que se situava na intercessão da polícia médica, do higienismo e da puericultura, a atenção à saúde escolar evoluiu em fina sintonia com o conceito de promoção da saúde. Especificamente no espaço latino-americano e caribenho, a OPAS recomenda este paradigma como forma - principalmente - de subsídio à superação de problemas de saúde da população infanto-juvenil. Há de se considerar, no entanto, que a atuação da promoção de saúde escolar - na perspectiva da supervisão à saúde -, supera os limites desse grupo humano, ocupando-se também da família, do espaço físico escolar e dos profissionais que fazem a educação, numa perspectiva de assistir e também capacitar os indivíduos para um modelo de vida cada vez mais saudável.
No tocante à realidade brasileira, especificamente no que diz respeito à educação em saúde na escola, entendemos ser necessário ao profissional de saúde sensível à questão de planejar/implementar/avaliar tais ações junto com os educadores, além do domínio da IREPS enquanto estratégia, ter um olhar crítico da estrutura e funcionamento do ensino básico. Nessa perspectiva, se inserem as recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais9, ao prescreverem os temas afeitos à saúde como transversais e interdisciplinares, portanto como um discurso do cotidiano escolar, a ser feito pelos educadores, sob múltiplos olhares.
Assim, cabe aos protagonistas da saúde entender que a participação dos mesmos no processo de educação em saúde na escola só se justifica se implementado, menos como ações pontuais de educação à saúde na escola, porém, na potencialização da ação do educador em sala de aula - o que se dá através da oferta de cursos de formação continuada ou atualização voltada para os mesmos.
No entanto, conforme recomenda o PSE, as equipes de saúde da família deverão realizar visitas periódicas e permanentes às escolas, no sentido de avaliarem as condições de saúde dos educandos, proporcionando, dessa forma, o atendimento à saúde ao longo do ano letivo, conforme as necessidades locais.
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